Na rua como uma Brasileira

Sabe, ser uma “brasileira” no Brasil não é uma questão, porque todas (ou quase todas) as mulheres o são. No entanto, uma vez fora do Brasil, isso se torna um marcador social.
Uma crónica de Alícia Medeiros sobre ser uma mulher brasileira em Portugal.

Por Alícia Medeiros@a_lichia_|

Este é o terceiro capítulo de uma coleção de peças criadas, a propósito do 200º aniversário da independência do Brasil, por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Alícia Medeiros foi escolhida por Flavia Doria, uma das cronistas-curadoras que convidámos para escrever e nomear outros autores, numa lógica de descentralização dos discursos e da ocupação dos lugares de fala.

Quando saí do meu país de origem e vim ‘morar fora’, demorei alguns dias para de fato perceber que não estava mais ‘em casa’.  Eu cheguei em Portugal em meados de setembro de 2013, no entanto não era completamente estranha ao território e cultura lusitana. Meus avós maternos eram naturais de Póvoa de Varzim e já havia visitado Portugal duas ou três vezes durante a minha infância. Visitar, no entanto, é diferente de morar.  Passei os primeiros dias com a minha tia, a caminhar pela Póvoa e pelo Porto. Andamos pela praia, fomos ao mercado do Bolhão, passamos pela Ribeira…caminhávamos até cansar, e então entrávamos em um café para enganar a fome. Era óbvio que não estava mais no Brasil, mas tudo ainda me parecia familiar. As músicas, a comida, e o sotaque português me acompanhavam desde pequena.

De fato, só quando comecei a interagir sozinha com portugueses que não eram meus ‘familiares’, comecei a pensar: ‘É, você não está mais no Brasil’. A primeira vez que pensei ‘você não está mais…’ foi quando estava a caminho da faculdade para o meu primeiro dia de aula no mestrado. Duas mulheres conversavam, quando uma delas comentou:“- Ela é uma boa rapariga, mas anda na rua como se fosse uma brasileira!”. A frase não foi dita para mim, elas falavam sobre outra pessoa (que suponho, não era brasileira), mas a frase caiu como uma pedra na minha cabeça. Nesse momento pensei: “É, não estou mais no Brasil, e aqui existe uma ideia bem específica daquilo que sou”.

Sabe, ser uma “brasileira” no Brasil não é uma questão, porque todas (ou quase todas) as mulheres o são. No entanto, uma vez fora do Brasil, isso se torna um marcador social. E junto com ele, vem os estereótipos que acompanham esse marcador

Durante a aula comecei a pensar nas diferentes possibilidades do que significava “andar na rua como uma brasileira”. Será que ela era uma brasileira de uma cidade grande, como São Paulo, e andava com pressa para pegar o trem antes da temida hora do rush na estação da Sé? Ou ainda andava atenta aos possíveis perigos que viver em uma grande metrópole traz? Talvez fosse o contrário, talvez ela andasse devagar, com calma, sem se preocupar com os carros e talvez metesse conversa com pessoas na rua, como se faz em pequenas cidades? Mas como as pessoas sabiam que ela era brasileira? Será que andava carregando uma bandeira? Quem sabe o comentário vinha de um estereótipo carnavalesco, talvez tinha um andar ritmado, ou andava meio a pular, como se faz no carnaval? Será que ela caminha sambando como cantava Benito Di Paula? Eu ri.

É claro que eu sabia o que elas queriam dizer quando falaram que “ela é uma boa rapariga, mas anda na rua como uma brasileira”. Bom, se ela era uma “boa rapariga, mas…”, isso significa que ser uma brasileira não é ser uma “boa rapariga”. O que separa uma “boa rapariga” de uma “rapariga má” (ou brasileira), é a mesma coisa que têm separado todas as mulheres entre “boas” ou “más” do ponto de vista patriarcal: a busca de uma autonomia corporal e sexual. 

As mulheres foram, ao longo da história, alienadas de seus corpos. Com base em discursos biológicos, religiosos e com interesses econômicos[1], os corpos femininos e feminizados foram estereotipados como “menos que” o ideal masculino, mero objeto de consumo dos homens e do capital. Este controle sobre os corpos adentrou a cultura social, que acabou por determinar que uma mulher “boa” ou “santa” era a mulher virginal, ou a mãe que obedecia os homens de sua família, e que ao contrário, uma “mulher má”, era aquela que buscava uma autonomia corporal e sexual, ou seja, que buscava tomar decisões sobre o que fazer com o seu corpo e com a sua vida. Fomos chamadas de bruxas, putas, vagabundas, galdérias, enfim, mulheres que não mereciam respeito ou direitos. É verdade que todas as mulheres já sofreram com isso, mas é verdade também que estes estereótipos são mais fortemente aplicados às mulheres que fogem ao clichê virginal europeu, o que se traduz muitas vezes nas mulheres das colônias, mulheres de origens africanas e sul-americanas, muitas delas racializadas. 

Quanto mais mergulhava na sociedade portuguesa, mais era lembrada de que eu não era daqui, e que as coisas ‘cá’, não são como no Brasil. ‘Cá’ eu era brasileira, o que no imaginário popular se traduz como sendo uma mulher sexualmente ‘aberta’ à investidas, em outras palavras, uma mulher ‘fácil’, uma ‘galdéria’ ou uma ‘puta’. Muitos portugueses, quando percebiam que eu não aceitava bem estes comentários, tentavam me ‘explicar’ o porquê deste estereótipo ser originalmente culpa dos próprios brasileiros: “ah, sabes que aqui sempre vemos o Brasil através das novelas, das músicas, dos livros e do Carnaval…”. Então a culpa dos estereótipos seria das obras de Jorge Amado, da adaptação audiovisual de “Gabriela”, do romance “Iracema”, dos pôsteres turísticos brasileiros que sempre mostravam mulheres com pouca roupa, a culpa era do samba e do carnaval?  Por fim, a culpa era das próprias brasileiras, que notoriamente ficaram conhecidas (no imaginário português) como as “prostitutas” das “casas de alterne” que foram “expulsas” pelas chamadas “Mães de Bragança”: Mães (portuguesas) contra as putas (brasileiras)? A possibilidade de que algumas daquelas trabalhadoras sexuais pudessem também ser mães, aparentemente foi ignorada. A ironia de que os clientes (ou ‘pais’ de Bragança?) iam às casas de alterne por vontade própria, foi suprimida, afinal, estes eram 'vítimas da sedução brasileira’. 

Ahh, as brasileiras sedutoras! Até eu, que nunca fui vista como o estereótipo de feminilidade e sensualidade agora era “a brasileira”, e como tal, “sedutora”. Eu que desde pequena tentava esconder o meu corpo, pois desde cedo percebi a violência do olhar masculino, me via mais uma vez a querer me afastar dos estereótipos sexuais. Por mais de um ano em Portugal não me envolvi emocionalmente ou fisicamente com ninguém. Tentei me focar nos meus estudos e investigações acadêmicas, pois uma das coisas que não se espera de ‘mulheres sedutoras’ é o intelecto. Mas logo percebi, mais uma vez, que não importa o que você faça, os estereótipos permanecem. E não adianta reclamar, pois “se não gostas de viver em Portugal, devias voltar para o teu país!”. De fato, eu escolhi viver em Portugal, mas não porque achava que este era um país perfeito, pois isso não existe. No entanto, eu gostaria, assim como quando vivia no Brasil, que o país em que vivo melhorasse. 

Continuei a me questionar sobre o que ‘andar na rua como uma brasileira’ significava, o que acabou por me levar à minha investigação de doutoramento sobre caminhar como prática artística com um recorte de gênero. Essa frase que ouvi na rua, como quem não quer nada, me fez questionar os estereótipos de gênero e a violência que sofremos em espaços públicos e não só. Sou muito grata à caminhada como imigrante, não porque ela foi fácil, ou perfeita, mas porque através das tensões que sofri durante a minha vivência desenvolvi ferramentas e questionei preconceitos que antes me passavam despercebidos. 

Dia 8 de Março eu vou andar, como uma brasileira, ao lado de outras mulheres, locais e estrangeiras, mães, filhas, trabalhadoras, santas, virgens e putas, mulheres cis e trans, heterossexuais e ‘fufas’, ‘betas’ e ‘sheilas’, para que Portugal melhore em relação à igualdade de gênero política, econômica, social e cultural. Se isso não faz de mim uma “boa rapariga”, tudo bem também, pois não tenho mais problemas em ser brasileira.  ¯\_(ツ)_/¯

Sobre a autora e a ilustradora:

Alícia Medeiros nasceu em Manaus, Brasil em 1988. Vive e trabalha em Porto, Portugal. É licenciada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e é Mestre em Arte e Design Para o Espaço Público pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). Trabalha ao nível das mídias móveis e do caminhar como prática artística/performance desde 2010, intensificando o trabalho nesta área desde 2013. Atualmente está em vias de concluir o Doutoramento em Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), onde investiga sobre como o caminhar no espaço público citadino se configura como prática artística sob o olhar feminino e como resistência à violência de gênero.

Drika Prates é ilustradora, designer gráfica e pintora. Reside em Portugal desde 2018, quando veio fazer seu mestrado em História da Arte Contemporânea na NOVA-FCSH e participou de residências artísticas locais, como o Festival A Salto em Elvas, além da Bienal de Coruche (2019). Ilustrou o livro Exposta da poeta brasileira Marina Vergueiro e hoje estuda ilustração num curso avançado do Ar.Co, em Lisboa. O seu trabalho é influenciado pelas cartografias do corpo, da natureza e da cidade, além de transitar pelas pautas feministas da vida em sociedade.

Referências

  1. Federici, Silvia. [2004] (2017). Calibã e as Bruxas: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. (coletivo Sycorax, Trans.). São Paulo: Editora Elefante.