Nunca gritaram‑me negra

Cresci, desse jeito, sem saber muito bem a definição de racismo, ouvindo vozes jovens e adultas, mas o tempo passou e eu passei pelo tempo. Uma crónica de Carolina Elis sobre racismo dos dois lados do Atlântico.

Por Carolina Eliscarolhellis|

Este é o nono capítulo de uma coleção de peças criadas, a propósito do 200º aniversário da independência do Brasil, por pessoas brasileiras que vivem em Portugal. Carolina Elis foi escolhida por Ciço Silveira, cronista-curador que convidámos para escrever e nomear outros autores, numa lógica de descentralização dos discursos e da ocupação dos lugares de fala.

I - Brasil

Vovó Raymunda arrastava os chinelos quando andava e a sua voz ressoava com gentileza quando proferia palavras ríspidas de amor e cuidado. Era conhecida por toda a vizinhança do bairro da Concórdia (Brasil, MG), um bairro simplório que não é favela, mas não deixa de ser periferia. A rua onde fica sua antiga casa é uma ladeira ridiculamente íngreme, com milhões de pedrinhas que escondem cacos de vidro e outros perigos entre seus vãos. Durante as férias da escola, eu e minha irmã nos juntávamos ao grupo de crianças da vizinhança para brincar de pés descalços nestas pedras. Entre um acidente e outro, as partidas de futebol e rouba-bandeira aconteciam ao longo dos dias ao som de gritos, gargalhadas, travessuras e outras balbúrdias que espantavam o ar estagnado que normalmente abraçava o bairro. Dentro destes rituais de eterna ignorância juvenil, vivíamos uma espécie de minidemocracia racial, uma utopia acidental. Ninguém via a cor de ninguém, apesar de sermos em maioria negros. Talvez porque quem visse primeiro teria de ser negro também e, naquela época, ninguém queria ser negro. Tampouco falávamos de racismo. O seu significado era uma incógnita numa equação cujo produto era aversão. Uma palavra que era simultaneamente tabu e ficção. Subconscientemente fizemos um pacto silencioso de complacência. Não havia racismo lá. Como poderia haver, num bairro tão utópico, tão racialmente democrático, tão pacato e cheio de boa gente?

Mas o racismo vestia roupas batidas e brincava entre nós.

Cresci, desse jeito, sem saber muito bem a definição de racismo, ouvindo vozes jovens e adultas, aqui e acolá, frases como “melhorar a raça”[1] e “preto não é flor que se cheire".[2] Mas o tempo passou e eu passei pelo tempo. A ignorância juvenil, passou a ser ignorância adolescente. Os pelos, a mudança corporal, os produtos químicos no cabelo, a rebeldia sem causa. Cresci, desse jeito, sem gostar muito de mim. As fases que passei, a revolta que não sabia definir, a raiva do mundo e a eterna busca de marcadores estéticos inalcançáveis. Cresci, desse jeito, com uma identidade fraturada. Por todas as bocas que não beijei e que não me quiseram beijar, por todas as línguas que, afiadas, cortaram meu corpo pouco a pouco. Cresci assim, desse jeito, sem entender os calores da juventude, com vergonha de mim mesma e da minha sexualidade, tentando desesperadamente ser o que nunca fui. Porque, pela sobrevivência, o fugir de mim parecia a resposta mais plausível. Deixei de ser negra. Nunca fui sapatão.

Mas as fraturas na minha identidade por vezes deixavam escapar o cerne.

AD Júnior, influenciador digital/apresentador brasileiro e figura proeminente na discussão sobre o racismo no Brasil, diz em suas redes sociais que “o racismo deu muito certo no Brasil”.[3] Quando me lembro da minha vida por lá, não consigo parar de pensar nessa frase. Esta realidade é minha, mas também é de muitas pessoas negras que vieram antes e depois de mim.

O Brasil se estabeleceu como uma indústria racista alicerçada pelas necro-políticas eugenistas, iliteracia racial e herança colonial que nunca foi reparada estrutural e historicamente. É uma questão muito maior do que o racismo puro e simples. Sim, o racismo e seus flagelos existem com a ajuda da mão estruturante do estado e das elites que o controlam, um projeto que serve de coluna dorsal daquilo que chamamos de Brasilidade.

O Brasil é uma indústria. A brasilidade é o produto final. A matéria-prima é a vida e a alma de crianças negras, LGBTQIA+, pobres e/ou com deficiências.

O racismo deu tão certo no Brasil que nunca me gritaram negra. Mas eu sempre soube que era.

II – Portugal

Quando cheguei nesse país, eu já não tinha o calor agreste de vovó Raymunda ou a firmeza doce de vovó Eva, a matriarca da família do lado da minha mãe. Em contraste com a bolha quente que me criou no Brasil, encontrei um país tão gélido que nem o calor da minha família, principalmente a parte que já morava em Portugal á anos, pôde me proteger. Foi um choque tão grande que a bolha brasileira estourou em proporções quase catastróficas, despoletando um jogo político de identidades e territorialidades sob o meu corpo.

Nas salas de aula riam do meu sotaque, duvidavam do meu intelecto, subestimavam a minha capacidade, mas nunca me chamaram de negra. Nas ruas me chamavam nomes, me assediavam ao mesmo tempo que me mandavam voltar para a minha terra. De repente eu era a brasileira de cor quente, a “zuka”, a puta, a mulata, a estranha, a imigrante, a que não pertence. Mas mesmo assim, não me chamaram de negra.

“Você não é preta, você é brasileira”

E assim aprendi rapidamente que a tecnicalidade territorial me daria o passe para fora da negritude. Seria essa a conclusão do grande projeto brasileiro? Erro meu, erro no sistema. Esse passe não abria as portas para os privilégios que o Brasil me ensinou a buscar.

Em Portugal dos imigrantes, há um lugar comum de desumanização. Um processo perverso de higienização, digamos assim, onde a xenofobia nos lembra, às vezes de forma velada e muitas vezes não, que para sermos pessoa é preciso buscar uma assimilação à hegemonia. Estando neste lugar, busquei novamente não ser lida como brasileira ou como negra. Como eu conseguiria essa proeza? Surpreendentemente fácil. Num país que se recusa a confrontar sua história colonial e que institucionaliza o racismo e a desigualdade racial quando, até recentemente, proibia através de lei a recolha de dados estatísticos étnico-raciais nos seus censos, é fácil vestir a capa da invisibilidade.

Agora eu não era negra e nem brasileira.

Mas assim como o passe para fora da negritude, a invisibilidade não me deixou passar. Estranhamente Portugal começou a parecer muito com o bairro da Concórdia da minha infância, quando as crianças iam todas para casa no fim do dia. O silêncio ensurdecedor, a estagnação no tempo e no espaço são os mesmos. Aos poucos fui percebendo que não interessava estar visível ou invisível, ser negra ou não, brasileira ou não. Para as estruturas coloniais desse país pouco importa como me sinto ou me apresente, eu seria racializada como convinha à ótica do colonizador. Como na minha infância, só me restou saborear os momentos de balbúrdia e brincadeiras. Cheguei assim à fase adulta, fraturada e boiando à mercê da maré.

III – Entre Brasil e Portugal

Muito tempo depois, na primavera dos meus 23 anos, quando comecei a tentar colar de volta os cacos de todos os processos fraturantes que atravessei, uma doença crónica parou a minha vida. Foi durante este período que pude finalmente me olhar como nunca tinha me olhado antes, que pude parar e processar traumas novos e antigos. O poema de Victoria de Santa Cruz, mulher afro-latina, se fez presente. Com ele entendi que durante toda a minha vida, me gritaram negra sem nunca terem gritado uma palavra. Finalmente muitas coisas fizeram sentido, finalmente adquiri a chave.

Deixei de alisar o cabelo. Me chamei de negra. E que lindo soou.

Quase 15 anos se passaram desde que cheguei a Portugal. Desde então, não voltei ao Brasil uma única vez. Oficialmente, o coração de D. Pedro visitou mais a minha terra do que eu. O solo onde descansam minhas matriarcas, no mesmo solo onde mais de 33 milhões de corações que batem passam fome,[4] o mesmo solo que a 13 anos lidera os rankings de assassinatos de corações trans e travestis,[5] o mesmo solo que sente o sangue dos corações negros e jovens a cada 23 minutos,[6] o solo onde os corações sofridos de mulheres negras recebem menos da metade do salário de homens brancos,[7] [8]o mesmo solo que no meio de uma crise política, social e económica ainda insiste em virar as costas para o problema que reside na sua gênese.[9] O solo que insiste em moer milhões de corações que batem para manter viva apenas a ideia de um que já morreu.

De Portugal não tenho muito a dizer. Enquanto o colonialismo e seus flagelos continuarem a ser impalpáveis, só nos resta mexer nos móveis da casa do colonizador.[10]

Sueli Carneiro, lá nos anos 2000, disse que “entre a esquerda e a direita, eu continuo preta”.[11] Eu acrescento que, entre Brasil e Portugal, eu também continuo preta.

Sobre a autora:


Carolina Elis (Belo Horizonte, Brasil, 1993) vive e trabalha em Lisboa. É uma artista autodidata e dedica-se, maioritariamente, à ilustração, ao desenho digital e à colagem. O seu trabalho tem como base a sua experiência enquanto imigrante, negra, queer e doente crónica. Assume-se como “artivista” e, através de narrativas negras, procura transgredir o padrão eurocentrado de beleza para demonstrar a experiência e resistência dos corpos negros.