Jogar à tabela para chegar mais longe

Analisámos dezasseis anos de contagens oficiais para perceber se este milénio nos pôs a ouvir mais música portuguesa.

Por Rute Correia@RuteRadio|

Este artigo faz parte da série "Estamos a ouvir mais música portuguesa?". No prólogo, debruçámo-nos sobre a ascensão da música no espaço mediático nacional na viragem do milénio.

Em Junho deste ano, Plutónio conseguiu alcançar a platina com “Sacrifício: Sangue, Lágrimas, Suor”. Foi o primeiro álbum sem edição física a conseguir a cobiçada certificação em Portugal. Apesar de contabilizar dezenas de milhões de audições, o disco não esteve uma única semana no Top Nacional de Álbuns. O acontecimento é um sintoma de um quadro clínico que não é propriamente novo: existe um grupo de artistas que apesar de bem estabelecidos, sobretudo na internet, continuam à margem das tabelas oficiais da indústria discográfica. Isto não as torna necessariamente obsoletas. As tabelas são apenas uma materialização do impacto da música, tanto a nível económico como social. Dizem-nos pouco sobre a qualidade, a longevidade ou a influência de um conjunto de canções, mas podem ser uma ferramenta particularmente útil na reconstrução cultural de um determinado ano ou época. 

Para lá do que ficou impresso em jornais, os historiadores terão alguma dificuldade em construir narrativas da música popular em Portugal nos últimos 30 anos. Se excluirmos as memórias individual e colectiva, até os jornalistas contemporâneos se deparam frequentemente com vazios de informação. Dos domínios e ligações que mudam aos meios que vão desaparecendo, a promessa do digital enquanto arquivo cai facilmente por terra. A efemeridade não é exclusiva de bits e bytes. O facto de grande parte do espaço mediático dedicado à música serem as ondas hertzianas também ajuda a que uma fatia substancial da reflexão e da divulgação de música acabe perdida no éter.

O escrutínio das tabelas de vendas é frequente no mundo anglófono. Da Billboard (EUA) às Official Charts (Reino Unido), a história da música popular que tem dominado o mundo desde a segunda metade do século XX está bem documentada em parte porque existem pontos de referência devidamente arquivados e relativamente acessíveis. No caso português, a falta de dados sistematizados traduz-se, muitas vezes, em narrativas distorcidas ou omissas. Por exemplo, grupos e artistas catapultados para o estatuto de celebridade facilmente deixam de ser (ou nunca chegam a ser, sequer) tratados em meios especializados, ficando relegados para as páginas de publicações cor-de-rosa. Mesmo que tenham sido particularmente bem sucedidos, as referências escasseiam para lá de menções esporádicas. Ainda que não se escreva sobre o clã Carreira nos sítios em que lemos assiduamente sobre música ou cultura, pai e filhos ocupam posições de destaque há vários anos. Com concertos e digressões cheias pelo país fora, milhares de discos vendidos e milhões de audições e visualizações em plataformas online, não há razão lógica para ignorá-los na caracterização musical do país. As tabelas de vendas ajudam-nos a ter uma visão mais alargada deste universo, ainda que com determinadas limitações.

A evolução das tabelas

É certo que a venda de discos, tanto nos formatos físicos como digitais, tem vindo a abrandar desde o início do século. No mercado norte-americano, os dados da RIAA (associação americana da indústria discográfica) detalham que estas vendas contabilizaram em 2019 apenas 18% das receitas do sector, num valor que ascende a quase a 2 mil milhões de dólares. A título de referência, na viragem do milénio, o peso dos CDs rondava os 90% do total. A nível global, o relatório mais recente da IFPI (federação internacional da indústria fonográfica) revela que as vendas representaram, em 2019, apenas cerca de 25% do total de receitas. Todavia, já há vários anos que tabelas de êxitos não se resumem a vendas. 

A revolução do streaming repercutiu-se progressiva e lentamente nas várias tabelas da Billboard. Reunindo dezenas de listas, diferenciadas por género musical e tipo de aquisição ou reprodução, a empresa começou por incorporá-lo nas tabelas de airplay - este indicador mede a exposição de um determinado tema na rádio, ou seja, o número de vezes que toca. Mais tarde, a categoria ganhou uma lista própria e hoje, tal como o airplay, o streaming está igualmente incorporado na classificação geral. Os critérios utilizados foram sendo ajustados ao longo dos anos. Por exemplo, apesar de visualizações de YouTube serem consideradas desde 2013 para a tabela de singles, só este ano foram admitidas nas de álbuns e com mais restrições do que nas primeiras. Existe, ainda, uma diferenciação no que respeita à contabilização de streaming pago ou gratuito. Já no Reino Unido, as audições e visualizações em streaming foram integradas nas contagens oficiais, tanto de singles como de álbuns, em 2015.

Se lá fora os singles assumem o protagonismo das tabelas, por cá, a unidade de medida que define a bitola das listas semanais da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP) ainda é o álbum. Embalada pela evolução do consumo digital, em 2016, a AFP começou também a publicar o Top Nacional de Singles e o Top Nacional de Streaming - ambas as listas foram alargadas para 200 posições no início deste ano. Conforme o que o Interruptor conseguiu apurar junto da AFP, só o streaming pago conta para as tabelas oficiais. Assim, são necessárias 250 audições de um tema para ser contabilizada uma venda.

Uma crise de dados e de exposição

Nos últimos anos houve algumas tentativas de divulgação destas tabelas em Portugal - caso da Blitz, que lhe dedicou artigos semanais pelo menos desde 2015 e até ao início de 2019. Para lá disso, notícias ocasionais noutros escaparates revelam alguns factos soltos como líderes, certificações e relatórios estatísticos anuais. No entanto, a informação tende a ser escassa e dispersa, longe da maior parte do público, mas nem sempre foi assim.

Durante quase duas décadas, o Top+ foi presença semanal nas tardes de fim de semana da RTP1. O programa, que divulgava a tabela de vendas de discos em Portugal, teve a sua última emissão a 22 de Dezembro de 2012, fruto de uma desavença entre a AFP e a estação pública. A rescisão que colocou um ponto final no programa foi unilateral, mas especulou-se que estivesse relacionada com o facto de tanto a SIC como a TVI deterem editoras discográficas à altura, nomeadamente a Som Livre/Valentim de Carvalho e a Farol. O formato deveria ter transitado para outro canal, mas tal nunca chegou a acontecer.

No ano seguinte, a saída da NielsenMusic do mercado europeu deixava cair as tabelas de airplay em Portugal. Não obstante o facto de nunca terem sido públicas, isto significa que, temporariamente, deixou de existir uma referência no que respeita ao número de vezes que determinado tema passa na rádio. A tarefa foi, mais tarde, entregue à BMAT. Ainda que estes dados sejam enviados à Entidade Reguladora de Comunicação como parte da regulação relativa às quotas de música portuguesa, as listagens de temas mais rodados na rádio não estão disponíveis de forma aberta. 

O único reduto facilmente acessível do arquivo do Top Nacional de Álbuns é o site suíço PortugueseCharts, onde encontramos as tabelas completas desde meados de 2003 até à actualidade. O site também disponibiliza as mais recentes tabelas relativas a singles, embora esse lado do arquivo seja mais difícil de navegar.

O que dizem os registos de mais de uma década?

Sem números de cópias nem volume de receitas disponíveis, uma das maneiras possíveis para analisar a evolução do consumo de música é através do número de entradas nas tabelas de vendas. O gráfico abaixo (gráfico interativo) ilustra a proporção de música portuguesa contra a estrangeira nas tabelas de cada semana de 2004 a 2019. Quanto mais forte é o verde, maior o rácio de entradas de artistas nacionais. Por oposição, quanto mais forte o vermelho, maior o número de entradas de artistas estrangeiros nessa semana. Foram examinadas as tabelas semanais de 2004 a 2019, inclusive, num total de quase 25 mil entradas. Não foi possível recolher dados relativos às cinco semanas que surgem a branco (duas em 2006 e três em 2007).

Apesar de ser difícil provar a causalidade, é de notar que a implementação de quotas de música portuguesa na rádio coincide com a viragem na tendência de consumo. A medida entrou em vigor em 2006 e impôs uma percentagem mínima variável de 25%-40% de música portuguesa na programação radiofónica. Ainda que esse ano tenha tido uma percentagem consideravelmente superior de música estrangeira nas tabelas (mais de 60%), o segundo semestre marca uma mudança quase abrupta na sua prevalência generalizada sobre a nacional. Uma das tendências sazonais a realçar é que, desde 2007, as duas últimas e as duas primeiras semanas de cada ano têm maior número de entradas portuguesas - provavelmente impulsionadas pelas compras de Natal. 

O Reino de Mariza e suas Cortes

Os cinco artistas com maior número de entradas são todos nacionais, mas Mariza é a grande rainha. A fadista conseguiu quase mil entradas - precisamente, 968 - durante o período de análise. É a única artista perto da marca dos quatro dígitos. O segundo classificado, Tony Carreira, aparece 641 vezes, seguido de perto por outra grande senhora do fado. Além de conseguir o terceiro lugar do pódio, Ana Moura leva a taça para álbum com mais semanas nas tabelas. Editado em 2012, “Desfado” esteve 273 semanas nos 30 mais vendidos, o que equivale a cerca de 4 anos e meio. Até hoje, vendeu mais de 90 mil cópias e alcançou a sêxtupla platina.

A classificação do fado como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, no final de 2011, terá sido uma alavanca inestimável para o reconhecimento do género além fronteiras, mas não só. Com “Desfado”, 2012 torna-se um ano de viragem, mas Ana Moura não cimentou a revolução sozinha. António Zambujo será o caso mais evidente desta crescente popularidade. Foi só com o seu “Quinto” álbum de originais que conseguiu encontrar um lugar nas tabelas oficiais. A dupla platina, por mais de 30 mil cópias vendidas, e as 125 semanas que segurou uma posição mantêm o disco como um dos mais populares do músico alentejano até hoje. Ainda nesse ano, o segundo trabalho de Carminho acabaria por colocá-la na lista de vozes obrigatórias do género. Apesar de ter conquistado a platina com o seu álbum de estreia, três anos antes, é com “Alma” que confirma o seu estatuto. O disco permanece nas tabelas 110 semanas, e faz da artista a primeira mulher a ser distinguida com o Prémio Carlos Paredes. De pés e refrões fincados por mais de dois anos na contagem, qualquer um destes três contribuiu largamente para os números alcançados nos anos seguintes.

Capa do disco "Desfado" de Ana Moura

© Universal Music Portugal

Capa do disco "Quinto" de António Zambujo

© Universal Music Portugal

Capa do disco "Alma" de Carminho

© Warner Music Portugal

Outro ponto que merece nota de realce é o peso das antologias, tanto de estúdio como ao vivo. No caso de Mariza, quase metade das suas entradas é referente a dois discos de êxitos, “Best of Mariza”(2014) e “Concerto em Lisboa”(2006). Também Tony Carreira consegue com este tipo de registo discográfico cerca de um terço das suas presenças. Todavia, o maior destaque vai para Paulo Gonzo, que acumula mais de metade das suas entradas com “Perfil”(2008) e “Duetos”(2013), e para Rui Veloso. O músico portuense surge no 21º lugar de artistas nacionais, garantindo cerca de 85% das suas posições com colectâneas de sucessos repartidas por versões ao vivo, de estúdio e reinvenções de temas seus ao lado de convidados.

Desenganem-se os iludidos que veem no álbum um formato sem relevância. Entre 2016 e 2018, cada um dos dez artistas nacionais com maior número de entradas editou, pelo menos, um disco novo. 2018, o ano de maior fartura, trouxe trabalhos inéditos de António Zambujo, Mariza, Carminho, Pedro Abrunhosa e não um, mas dois álbuns de O Panda e Os Caricas. Cada um destes registos esteve, no mínimo, quatro meses nas tabelas nacionais. Até ao final de 2019, o mais recente álbum da grande líder, “Mariza”, totalizava 81 semanas na contagem - todas as semanas desde que apareceu nas lojas, a 25 de Maio de 2018.

Muitas vezes subestimados enquanto audiência, os mais novos acabam por assumir uma posição de peso na definição das tabelas. Quando falamos em mais novos, queremos mesmo dizer crianças. Afinal, três dos vinte artistas nacionais que aparecem mais vezes nas tabelas são orientados para o público infantil: Panda e Os Caricas (#5), Xana Toc Toc (#14) e Maria de Vasconcelos (#16). Com 326 ocorrências, O Panda e Os Caricas ficaram à frente de qualquer artista estrangeiro. Este valor não inclui sequer outros dois projetos do Canal Panda: Panda e Os Amigos, que contabilizou 29 entradas, e O Panda Vai à Escola, que surge 79 vezes, mais uma do que David Fonseca. Um pouco mais abaixo, ainda assim, o Avô Cantigas consegue mais entradas do que Miguel Araújo.

Do lado internacional, os britânicos Coldplay reinam isolados. A segunda classificada, Paula Fernandes, confirma que a diferença de sotaque não se traduz em desinteresse deste lado do Atlântico. Afinal, são vários os artistas lusófonos que conseguem marcar posições de relevo nesta tabela, com Anselmo Ralph, Ivete Sangalo e Roberto Carlos bem firmes na lista de favoritos do público nacional.

Afinal, gostamos de música portuguesa

No que respeita à média de música portuguesa semanalmente nas tabelas, 2018 foi o melhor ano, mas com uma marca apenas ligeiramente superior à de 2016 (uma diferença de cerca de 0,3 pontos percentuais). Em ambos os anos, a percentagem média de entradas nacionais rondou os 58% por semana. Neste indicador, o pior ano foi 2004, com apenas 27,8% de música nacional em média por semana. Os maiores aumentos anuais aconteceram de 2006 para 2007 e de 2009 para 2010, com subidas de aproximadamente 12 e 9 pontos percentuais respetivamente. A maior queda deu-se de 2018 para 2019. Depois do melhor ano, e de quatro anos consecutivos com valores acima dos 50%, em 2019, a média semanal baixou para cerca de 47%, o valor mais baixo desde 2012.

Não é possível afirmar que estamos a comprar mais música em comparação com décadas anteriores. Contudo, esta evolução das tabelas de vendas deixa claro que, em comparação com o início do período de análise, há hoje mais música nacional a garantir o seu tempo de antena nos dias dos portugueses. Apesar da quebra significativa no ano passado, a música portuguesa domina inequivocamente as listas oficiais nos últimos anos. Ainda que tenha deixado de ser necessário aparecer nestas contagens para bater recordes, o espaço foi conquistado também neste campeonato. E mesmo que uns ganhem mais que outros, a vitória da música portuguesa é de assinalar.

Notas Metodológicas

Depois de recolhermos os dados do Top Nacional de Álbuns da AFP de PortugueseCharts.com, utilizámos a API do MusicBrainz para conseguir a informação relativa à nacionalidade dos artistas. Estes dados foram retificados manualmente, uma vez que muita da informação estava em falta. O número de entradas apresentado corresponde unicamente ao período de 2004 a 2019, inclusive, e às 30 primeiras posições. Este período foi o escolhido por ser o único com dados disponíveis relativos a anos inteiros. Para os efeitos desta análise:

  • Variações no nome do mesmo artista singular foram agrupadas. Exemplo: Pedro Abrunhosa inclui Pedro Abrunhosa & Os Bandemónio e Pedro Abrunhosa & Comité Caviar.
  • Entradas de supergrupos estão contabilizadas como entradas únicas e não entram nos totais de artistas singulares. Exemplo: Humanos não contam para Camané, David Fonseca e Manuela Azevedo.
  • Entradas de parcerias entre artistas individuais estão contabilizadas separadamente. Exemplo: O projeto de António Zambujo & Miguel Araújo não conta para o António Zambujo, nem para o Miguel Araújo.

O código desenvolvido no âmbito deste artigo está aberto e disponível no GitHub do Interruptor.