Mais gráficos para conhecer melhor o cinema em Portugal
As pessoas em Portugal vão pouco ao cinema, mas será porque não querem ou porque não podem? Continuamos o retrato do cinema em Portugal, com foco no acesso.
Em média, cada pessoa em Portugal vai ao cinema menos de duas vezes por ano, mas talvez seja injusto assumir um desinteresse generalizado da população pela sétima arte. Ir ao cinema pressupõe algum rendimento disponível: um bilhete de cinema na cadeia com mais salas em Portugal custa mais de 1% do salário mínimo nacional (cerca de um quinto da população ativa recebe o SMN). Além disso, não é possível ir ao cinema se ele não existir e talvez seja esse o maior obstáculo. Os dados do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) indicam que existem 541 ecrãs de cinema em Portugal, mas 63% concentram-se em apenas vinte concelhos.
Para lá das grandes cadeias de salas de cinema, existem outros dois importantes focos de divulgação da sétima arte em Portugal: os festivais e os cineclubes. Apesar de a crise do início da década passada também se ter feito sentir nos festivais, a descida no número de espectadores destes eventos não foi tão acentuada como nas salas habituais. Entre 2010 e 2019, os festivais levaram cinema a mais de 250 mil pessoas por ano. Em 2011, 2012 e 2018, a marca ultrapassou os 280 mil. Mas o alcance dos festivais não se traduz necessariamente em democratização no acesso.
Até 2013, o Fantasporto reinava isolado como o maior festival de cinema em Portugal. Desde então, o cenário mudou bastante de figura. Lisboa assumiu-se como ponto centralizador de festivais de cinema, acumulando o maior número de eventos e reclamando para si quatro dos cinco maiores: Doclisboa, Indielisboa, Leffest – Lisbon & Sintra Film Festival e Monstra. A única exceção é o Curta Vila do Conde que, depois de ter perdido cerca de metade dos espectadores entre 2015 e 2018 (cerca dez mil), recuperou um pouco em 2019. Naturalmente, a pandemia trouxe desafios acrescidos a estes eventos, obrigando a edições reduzidas ou, até mesmo, canceladas. No entanto, o antigo bastião dos festivais de cinema foi a exceção à regra: em 2020, o Fantasporto conseguiu mais dois mil visitantes do que em 2019.
De certa forma, os festivais de cinema ampliam a desigualdade no acesso, algo que se tem acentuado nos últimos anos. Na sua tese de doutoramento, Tânia Leão fez uma análise comparativa dos públicos do Indielisboa e do Curtas Vila do Conde.[1] Das categorias profissionais à frequência de outros festivais (tanto de cinema, como de música ou teatro), é possível inferir uma certa disponibilidade financeira do espectador-tipo destes eventos. No entanto, é no festival nortenho que notamos um peso maior do festival nos hábitos de consumo cinematográfico. Na descrição da “regularidade com que costuma assistir a cinema em espaços e suportes diferenciados”, 22,5% admitiu nunca ir a cinemas tradicionais ou a multiplexes, mais oito pontos percentuais do que a amostra lisboeta. Por outro lado, a dificuldade no acesso ao cinema (seja por falta de oferta, infraestruturas ou de disponibilidade financeira) é também evidente na percentagem de pessoas que descarrega filmes da internet frequentemente – 41,8% em Vila do Conde contra 35,1% em Lisboa.
Em declarações à Agência Lusa, a investigadora admitiu que o programa de apoio aos festivais criado em 2003 "foi um passo decisivo no sentido de uma maior profissionalização e institucionalização destas iniciativas"; na sua tese, evidencia precisamente o caso do Indielisboa como um festival surgido neste contexto (fundado em 2004). No entanto, as conclusões remetem para “o agravamento das assimetrias regionais na distribuição dos apoios públicos a este tipo de exibição, o que levou ao ressurgimento de festivais de cinema, apoiados pelo Estado, na capital e noutras cidades do litoral do país” – depois das alterações da Lei do Cinema em 2012. Assim, o potencial de descentralização do acesso ao cinema através destes eventos continua por cumprir. Não é que não existam festivais fora dos grandes centros urbanos, mas são poucos, pequenos, precários e as condições para novas iniciativas são quase inexistentes.
Em alguns locais, como Vila do Conde ou Avanca, os festivais andam de mãos dadas com outras iniciativas mais alargadas no tempo, nomeadamente cineclubes. Estes projetos têm avançado a missão descentralizadora do cinema em Portugal. Entre 2016 e 2019, estas organizações levaram, em média, cinema a quase 86 mil espectadores por ano. Apesar do rombo dos confinamentos e outras restrições pandémicas, proporcionalmente, a sua atividade foi menos afectada do que a do circuito comercial, o que denota um envolvimento superior das comunidades nestes acontecimentos. Em 2020, as sessões de cineclubes reportadas ao ICA foram vistas por mais de 40 mil pessoas.
É certo que vários destes grupos se situam em locais onde existem recintos de exibição comercial. Todavia, a hegemonia das grandes cadeias de exibição e distribuição faz com que um maior número de salas não se traduza necessariamente numa maior diversidade da oferta. Assim, os cineclubes tendem a cumprir esse propósito, alargando possibilidades de visualização em locais onde a oferta é diminuta, como confirmou ao Interruptor José Pedro Pinto, técnico de atividades culturais e artísticas do Cine Clube de Viseu. A capital da Beira Alta é uma das poucas cidades nacionais com mais de uma dezena de salas, mas o circuito comercial é dominado pela NOS Lusomundo, que detém as doze salas repartidas pelos multiplexes do Fórum Viseu e do Palácio do Gelo. Assim, a ação do cineclube, que se desdobra em atividades que vão de ciclos temáticos a encontros com realizadores ou, até, cinema nas escolas, é um acrescento fundamental à cultura na cidade: é através dela que chega o cinema de autor e, tendencialmente, a produção nacional.
Pelo país fora, os cineclubes são um bom exemplo do aproveitamento de infraestruturas, reforçando a importância da sua existência, sobretudo em zonas carenciadas ao nível de oferta cultural. Em 2002, o espalhafitas – Cineclube de Abrantes foi responsável pela primeira projeção cinematográfica no Cine-Teatro S. Pedro, onde continua a sua atividade até hoje com sessões semanais ao longo de onze meses por ano. A associação organiza, igualmente, sessões regulares no município vizinho de Sardoal, onde faz uso do Centro Cultural Gil Vicente. Não são só os recintos municipais a beneficiar destas dinâmicas. Na margem sul do Tejo, o Cine Clube do Barreiro exibe alguns ciclos nas salas da Castello Lopes, no Fórum Barreiro.
Para lá dos cineteatros e auditórios que vai ocupando (com sessões regulares no Cine-Teatro São Brás, em São Brás de Alportel), o Cinemalua garante sessões de cinema ao ar livre espalhadas pelo Sotavento algarvio. O programa de cinema itinerante, que funciona desde 2019, passou este ano pelos concelhos de Alcoutim, Castro Marim, Tavira e São Brás de Alportel – excetuando Tavira, nenhum destes municípios tem um serviço regular de exibição. Mais do que levar o cinema às sedes de concelho, a associação cultural distingue-se por levá-lo a freguesias mais remotas, onde os filmes quase só chegam pela televisão.
O problema no acesso ao cinema em Portugal é evidente no mapa das infraestruturas: cerca de dois terços dos municípios nacionais não têm sequer um ecrã de cinema. Nos concelhos sem cinema, moram mais de três milhões de pessoas. Grosso modo, em cada sete salas, uma é em Lisboa. A capital tem mais do dobro de salas do que qualquer outro município: segundo os dados do ICA, em 2021, existem 67 ecrãs na capital contra 28 em Vila Nova de Gaia e Braga, as duas cidades que se seguem. O desequilíbrio é ainda mais flagrante, quando olhamos para o resto do país. Dos concelhos em que existe cinema, 84% tem menos de dez salas e 55% tem apenas uma.
Mesmo quando os ecrãs existem, a maioria continua sem serviço habitual. Em Bragança, as sessões regulares regressaram em novembro ao Auditório Paulo Quintela, ao fim de quase um ano de paragem. De notar que a cidade transmontana, capital de distrito, esteve cinco anos sem cinema, depois do encerramento das salas Castello Lopes, em 2012. Ainda que possa existir algum atraso na recolha de dados, ou sessões especiais de natal que ainda estejam por acontecer, o cenário não é animador. Os dados do ICA indicam que, dos 110 municípios em que houve exibição de cinema em 2021, 31 tiveram menos de duas sessões por mês, incluindo Barcelos (115 mil habitantes), bem como as capitais de distrito Aveiro, Beja e Portalegre.
No que respeita ao cinema nacional, a Cinemateca Portuguesa está a trabalhar ativamente na criação de circuitos alternativos de exibição e distribuição, facilitando o acesso às películas através da sua digitalização. Segundo a Lusa, o grande arquivo do cinema nacional prepara-se para digitalizar "460 títulos produzidos desde 1920 até 2010" até 2025, num esforço integrado no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Em declarações à agência noticiosa nacional, o diretor da Cinemateca, José Manuel Costa, afirmou que "o objetivo é que nem mais um filme fique fora do circuito de distribuição e exibição em todos os níveis que o compõem hoje. Que não haja mais filmes que só possam ser exibidos na Cinemateca. Haja vontade de ver os filmes, haja programadores que os programem, haja comunidades". As comunidades já sabemos que existem, que se ocupem mais salas.
* Texto atualizado a 22 de dezembro de 2021; retirada a nota de que Vila Nova de Famalicão não tem cinema, visto que tem serviços regulares na Casa das Artes de Famalicão.
Notas Metodológicas
Trabalhámos com os dados disponibilizados pelo ICA e pelo INE (estimativas de população residente). Os dados foram recolhidos em dezembro de 2021.
As moradas e hiperligações dos cineclubes foram recolhidas manualmente em dezembro de 2021; correspondem à informação disponibilizada publicamente pelo próprio cineclube. Nos casos em que o cineclube aparenta não ter um espaço físico próprio, utilizámos as moradas dos recintos em que realizam sessões regulares.
No mapa dos ecrãs, adicionámos manualmente a informação relativa a Bragança (número de ecrãs e sessões realizadas), visto termos detetado a sua omissão nos dados do ICA.