Colonialismo à portuguesa: A memória (parte 1) - Série Memória Coletiva

Transcrição

RUTE CORREIA (introdução): Olá, o meu nome é Rute Correia e sou jornalista do Interruptor. O que vais ouvir agora é o primeiro capítulo da Memória Coletiva, uma nova série de podcasts do Interruptor orientada para questões coletivas com impacto na cultura dos nossos dias. É a primeira de duas partes focadas no colonialismo português, e conta com os depoimentos de Paula Cardoso, Helena Vicente, Carlos Pereira e Vítor Sanches. Neste episódio, fazemos uma contextualização histórica do colonialismo em Portugal com ênfase no tráfico humano perpetrado ao longo de séculos com o apoio do Estado português.

Se quiseres saber mais sobre o assunto, aproveito para recomendar que leias o nosso artigo “3 gráficos para compreender o colonialismo português”, em que desmontamos alguns mitos do colonialismo português - da ocupação de territórios à guerra colonial, passando pela abolição da escravatura.

Além das habituais notas em que listamos referências e leituras adicionais, este episódio tem ainda a transcrição disponível no nosso site interruptor.pt.

PAULA CARDOSO: Lá está é... São heranças que nós temos, são heranças coloniais que nós trazemos. Aliás, são heranças do império e portanto não é só o colonialismo temos de voltar muito mais atrás. São as heranças do império portanto, este Portugal imperial que construiu toda a sua ideia de nação, de país, toda a identidade portuguesa está ancorada nesta narrativa dos Descobrimentos, no conceito dos Descobrimentos... E como nós nem sequer podemos questionar estas terminologias porque a própria língua, como é óbvio, é a língua do opressor. Eu falo a língua do opressor. Tento ir encontrando uma série de conceitos mais neutros, mas é um processo. Porque a partir do momento em que eu tomo consciência que eu estou a retirar o poder da ação à minha história, eu começo a tentar contá-la de outra forma - uma forma que homenagie os meus ancestrais e eu acho que isso é super importante. Esta questão eu já não digo por exemplo colónias ou falo em territórios colonizados ou territórios ocupados...

RUTE CORREIA (narração): A 25 de Abril de 1978, na abertura do seu livro O Labirinto da Saudade, Eduardo Lourenço escrevia “Uma pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos.” Se o Estado deve garantir que os direitos humanos dos seus residentes e nacionais estão salvaguardados, então, tal como ouvimos Paula Cardoso ainda há pouco, a pátria deve respeitar e proteger a sua memória.

Sobre colonialismo já muitos escreveram. Em Portugal, este processo de ocupação começou no século XV, orientado pelo Infante D. Henrique, e durou até ao final do século passado. A exploração colonialista teve períodos de maior e menor intensidade, mas foi o grande motor da economia portuguesa nos últimos cinco séculos. A saída de Portugal dos territórios colonizados foi lenta. Exceção feita aos territórios que foram sendo conquistados por outras potências coloniais ao longo dos séculos, como partes do Sri Lanka e da Malásia, esta saída começou em 1822 com a independência do Brasil e só terminou em 1999, quando Macau regressou à soberania chinesa – cerca de 450 anos depois da chegada dos primeiros portugueses à península.

À medida que os portugueses foram chegando a esses novos mundos, deixaram também um rasto de violência que de certa forma dura até hoje. O colonialismo deixou para trás um racismo estrutural apontado à população negra tanto no território nacional, como em muitas das terras que foi invadindo.

Paula Cardoso foi jornalista durante quase duas décadas. E em 2019, fundou a Afrolink, uma plataforma que dá visibilidade às comunidades africana e de afrodescendentes em Portugal. Conversei com ela numa chuvosa tarde de abril, no Cais do Sodré em Lisboa.

PAULA CARDOSO

Existem muitos portugueses cuja memória está a ser desrespeitada. A minha memória está a ser desrespeitada todos os dias quando eu saio à rua e tenho de me confrontar com o Padrão dos Descobrimentos, por exemplo.

Esta estátua que nós temos aqui também. Quando nós olhamos para ela, nós supostamente vemos o Sá da Bandeira nós supostamente vemos - isto é o que se diz, agora não sei até que ponto é que, de fato aquela figura que está ali recriada corresponde a Fernanda do Vale, que é conhecida como a Preta Fernanda. Se, de facto, é ela - porque quando nós olhamos para os traços e os traços não são de uma mulher negra. Portanto, os traços dela foram europeizados. Por que é que isto acontece? Por que é que isto aconteceu? Se, de facto, ela é que serviu de modelo para aquela estátua porquê recriá-la desta forma. E todo o espaço público numa série de aspetos é tremendamente violento para a memória das pessoas negras neste país, é tremendamente violento.

Agora vamos ter um memorial de homenagem às pessoas escravizadas teve de partir de uma iniciativa de uma associação que é a Djass - Associação dos Afrodescendentes, senão isso não aconteceria. Portanto, foi uma proposta que foi apresentada para o Orçamento Participativo da Câmara de Lisboa; foi votado e aprovado e a coisa vai avançar mas é preciso fazer mais do que isso, muito mais. Mas eu gosto de ser otimista em relação a estes processos e acho que conforme eu dizia nós estamos a começar a conversar sobre isto, portanto, é normal, para já as feridas ainda estão muito abertas e as feridas nunca vão sarar. Não é possível cicatrizar seja o que for, se nós não conversamos sobre o assunto.

RUTE CORREIA (narração): Projetado pelo artista angolano Kiluanji Kia Henda, o Memorial da Escravatura em Lisboa deverá abrir ainda antes do verão. Intitulado "Plantação – Prosperidade e Pesadelo", este trabalho evoca a memória das plantações de açúcar, mantidas durante séculos por mão-de-obra escrava nos territórios ultramarinos invadidos por Portugal. 540 canas-de-açúcar em alumínio preto plantadas no Campo das Cebolas, naquele que será o único monumento da cidade dedicado às pessoas escravizadas. A capital está repleta de referências a uma época que resiste num determinado imaginário coletivo como anos de glória, mas custou literalmente milhões de vidas – sobretudo vidas negras.

Há meia dúzia de meses, a remoção dos brasões da antigas colónias do Jardim da Praça do Império deu azo a muita discussão, o que indicia desde logo um problema grave na consciência coletiva que parte da população portuguesa tem da sua história. A questão da descolonização dos espaços é muito mais profunda do que brasões em jardins – a começar precisamente pelos nomes dos sítios, mas é algo que se estende bem para lá disso.

À toponímia, juntam-se as estátuas e os monumentos mais visitados do país – o Mosteiro do Jerónimos e a Torre de Belém, além do seu vizinho, o Padrão dos Descobrimentos, cuja construção foi apenas terminada em 1960, numa representação clara da exaltação salazarista do colonialismo. Estes serão os exemplos mais óbvios, mas andar por Lisboa é habitar permanentemente os ecos deste passado glorificado. Até no Metro, as linhas verde e vermelha são representadas graficamente por uma caravela e por uma rosa dos ventos.

Mesmo em partes mais recentes da cidade, como o Parque das Nações, Lisboa permanece submersa no ideário da expansão marítima como um período de orgulho nacional. E ainda que uma Alameda dos Oceanos seja muitíssimo diferente de uma Avenida das Descobertas, as honras que a exploração colonial continua a ter no espaço público português – sobretudo, na capital – estão claramente desligadas do trauma que o tráfico de milhões de africanos tem nos seus descendentes portugueses.

HELENA VICENTE: Temos de fazer um esforço para que as pessoas negras parem de ser vistas apenas como estrangeiras e como migrantes porque... É engraçado pensar nisso. Eu estive numa conferência da APS, que é o Congresso de Sociologia, e apresentei minha tese passado esse tempo todo que nunca mais toquei naquilo. Então, fui apresentar a minha tese e também por causa do trabalho aproveitei, apresentei a tese. E eu fiquei num painel que era sobre migrações e empreendedorismo. E antes de começar a apresentação eu acho que estou no painel certo, porque não falo sobre empreendedorismo e porque eu também não falo sobre pessoas migrantes. Eu estou a falar sobre pessoas que fazem parte da sociedade portuguesa, pessoas que nasceram cá, e então o moderador desse painel fez muitas coisas que não devia - como moderador e também como pessoa que investiga esse tipo de coisas como sociólogo, na realidade.

Mas o que eu gostaria aqui deixa claro que se calhar temos de começar a pensar - pensar não, dizer - também que a população negra faz parte do tecido social português não apenas como imigrante não apenas como estrangeiro. Porque esta visão muito muito presente e o que acaba muitas vezes a constituir aqui em um conflito e constituir aqui uma marginalização. Se vamos olhar para esta população como pessoas que não são daqui, muitas das coisas que acontecem são justificáveis e quando nós estamos aqui a falar da população portuguesa destas pessoas como integrantes da população portuguesa então aqui algumas coisas se diferenciam e chamam mais a atenção.


RUTE CORREIA(narração): Helena Vicente, que acabámos de ouvir, é investigadora do Instituto de Ciências Sociais. Esta estrangeirização da população negra em Portugal que refere está presente em quase todas as ramificações da sociedade. O seu impacto está bem documentado no conjunto de reportagens que a jornalista Joana Gorjão Henriques fez para o jornal Público em 2017; hoje reunidas no livro “Racismo no País dos Brancos Costumes”, editado pela Tinta da China. Da justiça ao acesso à habitação, da educação à nacionalidade, de certa forma o apartheid não oficial que existia nos territórios africanos ocupados migrou espiritualmente para a sociedade portuguesa do pós-25 de Abril, mas há muitos séculos que por cá habitam afroportugueses.

No século XVI, estima-se que pelo menos 10% dos habitantes de Lisboa fossem negros, mas há historiadores que apontam para números na ordem dos 20%. Havia libertos e pessoas à margem do tráfico humano feito na altura com o patrocínio da Coroa Portuguesa, mas a maioria era população escravizada. Com a abolição da importação de escravos para a metrópole, em 1761 pelo Marquês de Pombal, esta percentagem acabou por diminuir, mas continuaram a existir comunidades de afroportugueses na capital e não só.

Reconhecendo a independência dos países recém-criados como berço de cidadania, o 25 de Abril com que os naturais das ex-colónias sem ascendência direta portuguesa perdessem o direito à nacionalidade portuguesa.1 Quando a Lei da Nacionalidade foi reescrita e aprovada em 1981, o texto indicava que só os filhos de imigrantes estabelecidos em Portugal há pelo menos seis anos tinham direito a ser portugueses ao nascerem em território nacional. Mas foi precisamente nessa altura que a vaga de imigração vinda dos PALOP se intensificou.

Até hoje, esta lei já foi revista mais de uma dezena de vezes – com francas melhorias – mas permanece no nosso tecido legislativo como uma regulação profundamente desumanizante para milhares de pessoas nascidas, criadas e residentes em Portugal.

Em 2015, uma das alterações fez com que descendentes de judeus sefarditas passassem a poder adquirir nacionalidade portuguesa sem ter de fazer prova de conhecimentos linguísticos nem residência em Portugal. Esta mudança foi fruto de um esforço na reparação das relações entre Portugal e a comunidade judaica, perseguida e expulsa do território nacional durante o período da Inquisição, instituído em 1496 pelo rei D. Manuel I.

Mas para os filhos de imigrantes nascidos em Portugal entre 1981 e 2006, essa reparação histórica ainda está por fazer. Assim, existe uma geração de portugueses a quem não é reconhecida a nacionalidade, apesar de terem nascido e crescido no território nacional, trabalhado e pago impostos… muitas vezes sem nunca sequer terem viajado até ao país de origem dos seus pais.

Esta falta de reconhecimento de nacionalidade traduz-se numa realidade fraturante em questões de identidade e pertença – como jovens que chegavam à adolescência e percebiam que, afinal, o Estado não os reconhecia enquanto portugueses – mas também de questões práticas, como discriminação no acesso ao emprego ou à habitação ou, ainda, a possibilidade de elegerem e de eleitos. E existem pessoas nascidas em Portugal que estão ilegais, porque não lhes sendo reconhecida a nacionalidade, também não têm autorização de residência.

Até há muito pouco tempo, o processo de pedido de nacionalidade era caro e burocrático – pressupondo o pagamento de cerca de €200, documentação variada e provas de conhecimento da língua portuguesa - incluindo a naturais de países em que é língua oficial.

Entre 1995 e 2006, nasceram mais de 70 mil crianças em Portugal filhas de mãe estrangeira.

HELENA VICENTE: Acho que muita gente não se lembra, ou também pode não ter essa informação mas esta lei já foi alterada algumas vezes. Então se calhar nesses períodos de alteração existiriam interesses políticos que agora não são postos na mesa, que as pessoas se calhar já nem se lembram. ;as é necessário fazer esse exercício de perceber o porquê destas mudanças não perceber porque é que, pensando agora na comunidade negra vinda dos PALOP, porque é que existe esta dificuldade de acesso à nacionalidade enquanto que outros grupos não têm a mesma dificuldade.

Então, é um bocadinho... É necessário muita muita investigação individual e muita investigação para tentar perceber e tentar ligar os pontos históricos às tensões políticas que existiram. Mas nem sempre vamos ter um quadro mais claro possível é por aí, mas acho que talvez estejamos a caminhar para a mudança. Acredito que em 10/15 anos (que também já é muito) conseguiremos muito mais coisas. E eu também acredito que o facto de termos agora pessoas negras na Assembleia, deputadas negras na Assembleia, possa fazer alguma diferença, porque por muito que as pautas políticas dos vários partidos uns mais do que outros olhem para a inclusão e olhem para a questão da migração para a questão das pessoas que nascem cá mas não têm nacionalidade portuguesa, as pessoas que são negras não é? Olharam para isto de uma forma diferente. Eu vejo que têm estado a lutar também para que cheguemos a uma sociedade muito mais igualitária não só em questões de racismo mas em questões de classe e em questões de género.

RUTE CORREIA (narração): Na sua tese de mestrado, Helena Vicente analisou a presença de profissionais negros na televisão portuguesa ao longo de 25 anos. De 1992 a 2017, conseguiu identificar um total de 36, mas se excluirmos a RTP África esse número desce para 16. Trabalhámos esses dados para o artigo “Um ecrã em mil tons de branco”, que podes ler no nosso site.

Nessa altura, falámos também com Carlos Pereira. O humorista não integra a contagem do estudo por estar fora da linha temporal de análise. Chegou à televisão a título regular em novembro do ano passado, com um convite de Inês Lopes Gonçalves para integrar a equipa residente do 5 Para a Meia-Noite, na RTP1.

CARLOS PEREIRA: acho que isso resulta muito do processo que ainda falta fazer...neste pais, todo o processo da descolonização, no sentido em que, um amigo meu escrevia, a propósito do 25 de Abril na Comunidade Cultura e Arte, o Airton Cesar Monteiro que é um amigo meu, ele escrevia qualquer coisa como, Portugal descolonizou, ou seja, ouve a libertação das colonias, mas não descolonizou as instituições, não descolonizou as mentes, não descolonizou os espaços, penso que é qualquer coisa desse tipo...estou a citar de cabeça… E acho que é muito isso, acho que...sirvo-me dessas palavras para dizer exatamente isso: há um processo que ainda falta fazer, e da forma como as pessoas olham para as outras pessoas, olha, a forma como as pessoas olham para a capacidade de certas pessoas, porque ainda há muito essa resistência, uns são mais e outros são menos, não é? E então isso depois....isso, e conjugando com outro tipo de questões, faz com que tenhamos números desses, que em 25 anos, tu tenhas 16.

Imagina, há uma coisa muito curiosa, eu em tempos dei uma entrevista em que me diziam assim...«há...aconteceu esta coisa do Black Lives Matter, perguntaram-me se eu...o que é que eu achava e não sei quê, e eu disse pronto, o movimento já não era sem tempo, a coisa, é pena ter sido da forma como foi, à custa da vida de alguém, aconteceu o movimento, as pessoas mobilizaram se, saíram as ruas, e não sei quê, e fizeram ouvir se e não sei que e isso é muito bom. E a dada altura, alguém que estava presente disse qualquer coisa do «tipo, pronto, houve tudo isso, mas ao menos.... isso pode ter feito despoletado algumas consciências e certamente que ouve pessoas que ganharam trabalho por causa disso»… Estás a ver quão perverso é?!.. Quão perverso é 5 pessoas terem sido contratadas porque morreu um gajo?! Ou seja, quantas mais pessoas terão que morrer para que daqui uns anos tenhamos um quadro mais abrangente, não é?!

É sempre esta coisa, no que toca aos negros há sempre esta troca meio abjeta, meio perversa que é: «pronto, aconteceu esta coisa, é meio chato, não sei quê, há uma mobilização não sei quê, os gabinetes juntam se, vamos contratar este e não sei quê.» Imagina, é tão… É que até mesmo eu dou por mim a pensar, por que é que este convite não veio antes? Por que é que este convite não vem antes? Não quer dizer que não é que eu não mereça. Pronto...Às tantas, pronto, obrigado ao Floyd. Se foi, coitado!… Estás a perceber o que é? Porque a pessoa disse-me assim "Há" e eu assim...É que depois, a vitória não está nas 5 pessoas que foram contratadas, então e as outras que não estão? E as outras que não estão? As outras tantas...que os outros profissionais? A outra malta que saiu das escolas e está à espera da próxima morte? É sempre esta leva...Está um corredor, está uma fila de pessoas à espera de quando é que morre mais um, que é para acontecer mais uma mobilização, que é para depois sermos contratados. Não é? É que depois, mesmo o outro rapaz que agora foi todo um evento, eu também fiz parte desse evento, do rapaz da SIC noticias, o Cláudio França. Ouve uma tipo...podem-me dizer isto, eu estava a ser preparado a anos, estes miúdos então a ser preparados...Estão. Mas o timing é sempre estes, não é? É sempre muito engraçado esta coisa…

RUTE CORREIA (narração): A instrumentalização das pessoas negras foi constante durante o Estado Novo. O exemplo mais conhecido é o de Eusébio, herói nacional ao serviço da seleção portuguesa de futebol, mas existem outros, como o caso do então jornalista Adriano Parreira, que entrou ao serviço da RTP ainda nos anos 60 e integrou a equipa do Telejornal.

A miscigenação era evocada pelo Estado salazarista como uma das marcas da benevolência do nosso sistema colonial, em que os homens portugueses se dispunham a amar “mulheres de todas as cores”. A diminuta população portuguesa durante a fase inicial do período colonialista explica essa necessidade de reprodução com a população local para a manutenção dos colonatos – mas não houve muito amor nessa história. O que houve foi a normalização da violação de mulheres negras, cujo destino dependia exclusivamente da vontade dos seus traficantes e de quem as comprava como produto. O legado desta visão perdurou no tecido social brasileiro mesmo depois da independência e, de certa forma, dura até hoje.

Durante o Estado Novo, contudo, a celebração da mestiçagem nos territórios ainda ocupados por Portugal era algo que só existia num imaginário construído à volta do luso-tropicalismo, já que a África ocupada vivia numa espécie de apartheid não oficial. Em 1962, o investigador Perry Anderson denunciava que, em 1958, nos mais de 200 casamentos registados entre as chamadas pessoas civilizadas em Luanda apenas um deles foi entre um homem negro e uma mulher branca.

Exaltando o colonialismo enquanto orgulho nacional, o luso-tropicalismo foi o motor ideológico da política colonial e cultural do Estado Novo. Este modelo teórico, inaugurado pelo brasileiro Gilberto Freyre, defendia que “Portugal, o Brasil, a África e a Índia portuguesas, a Madeira, os Açores e Cabo Verde constituíam uma unidade de sentimentos e de cultura”; isto porque o português tinha, nas suas palavras, “a ausência de preconceito racial, apetência para a miscigenação e cristianismo fraternal”.

Mas, conforme Anderson dizia no seu artigo que mencionei há pouco - “A ideologia colonial portuguesa, como as suas equivalentes em qualquer outra parte do continente, é uma falsificação sistemática da realidade.” Na realidade, brancos e negros coexistiam praticamente segregados uns dos outros. E o poder só existia do lado dos brancos.

CARLOS PEREIRA: Mas a propósito disso eu...pego num discurso do Marcelo que foi um incrível discurso, eu acho...achei um bom discurso. E que à sua maneira...à sua maneira...mas que diz isso também, ou seja, pronto...temos que olhar para historias...todas as histórias e não tentar escamoteá-la, às historias de uns e as historias dos outros. E acho que é a primeira vez que há essa menção aos colonizados e dizer que a história não pode contada só na perspetiva de uns, também tem de ser contada na perspetiva dos colonizados. E que Portugal não é nem nunca foi um país perfeito.

Mas eu sinto que é esta coisa do...as pessoas tem medo, há um patriotismo muito frágil, que se nos tiram isto, o que é que fica?Não fica nada. Caramba, somos só uma t-shirt branca a €5.99, nem tanto. Somos uma t-shirt branca €1.99, tem os logos todos, esta t-shirt, que em tempos valeu 90 paus, agora vai valer €1.99, e as pessoas tem medo disso. Querem-nos tirar tudo, querem-nos tirar, mas é... Ou seja, mas essa reflexão tem de ser feita caramba, mas como? E quando? Se calhar, começar finalmente pela educação. Eu lembro-me de falar com um amigo meu que me dizia, “ah, isto quando mudar a geração, tu vais ver que isto vai lá, porque há uma geração muito mais consciente agora e mais capaz”. Não, se não educares na mesma essa geração que vem, vais perder. Por cada 15 jovens conscientes, tens cinco gajos com 15 anos que são conservadores...mas conservar o quê? Vão conservar a puberdade ou a mesada, tipo, tenham juízo.

RUTE CORREIA (narração): Sobre a falta de igualdade no acesso à educação e outras manifestações do colonialismo no Portugal atual, falaremos com maior profundidade no próximo episódio. No entanto, importa realçar que o racismo permanece invisível na estrutura do sistema, mas é bem claro para quem tem de lidar com ele todos os dias.

A herança do poder colonial resiste, traduzindo-se numa subalternização contínua da pessoa negra e do seu papel na sociedade portuguesa. Na Cova da Moura, Vítor Sanches desmonta o racismo com cultura na sua livraria, tipografia e loja cultural Dentu Zona.

VÍTOR SANCHES: Antes de mais quero dizer que não sou o único nessa batalha, tenho todos os estabelecimentos aqui fazem o seu trabalho. Pá, eu sou se calhar a pessoa que faz mais barulho, mas é muito importante dizer o que é que se passa aqui com os outros estabelecimentos, como o coqueiro, aqui o Café Baía, a frutaria lá em cima da doca, a senhora que vende peixe, eles todos fazem um trabalho excecional, e as costureiras também, tem todos uma parte de ajudar aqui na cova. Para pronto, o valor da cova da moura, digo eu. E sim,....pronto, é um trabalho que nós temos feito, não tem sido fácil, nós fazemos barulho, não tem sido fácil desde inicio. Já estamos nessa caminhada já há 5/6 anos, e pronto. Para algumas pessoas parece uma coisa nova, mas não, já tem aqui raiz. Nós aqui já fizemos varias vezes cineclube negro, fizemos varia conversas de mulheres entre mulheres, já fizemos também atividades para crianças, onde é que também o lema é sempre a identificação do teu ser.

E eu acho que é muito importante isso, nós tentamos sempre fazer algo que reflete aqui na comunidade e que seja bom para a comunidade e então tínhamos também assim palestras, tínhamos várias atividades que é para o empoderamento aqui do pessoal aqui da zona, que achamos que é um dos trabalhos que a gente tem de fazer. Para além de todos os habitantes fazerem aqui um trabalho de desconstrução com o patrão, ou desconstrução com o colega de trabalho - porque é uma desconstrução que nós fazemos, porque alem de receber o racismo ainda temos de desconstruir a pessoa que está a trabalhar connosco ou a pessoa que a gente está a servir, porque os média não fazem. Os média não fazem, poderia ser uma ajuda, mas os média não fazem essa desconstrução, e eu te pergunto, como é que tu desconstróis uma pessoa adulta, a não ser racista?...É muito difícil, não é?

PAULA CARDOSO: Sabes que eu acho que eu acho muito engraçado que em relação a esta questão das responsabilidades, das pessoas e depois entendem como culpa. Há muito aquela coisa do «ah, mas eu não estive lá e não escravizei ninguém...» Eu acho muito muito curioso porque eu não vejo ninguém sentado em cima do seu privilégio nomeadamente de heranças a dizer «Eu não mereço esta herança porque eu não trabalhei» por isto não vejo ninguém a fazer esse discurso. Então, porque é que o discurso inverso é tão reproduzido e de uma forma tão violenta porque é uma forma violenta, é de uma forma que procura silenciar quem tem direito à sua memória também e quem deveria já ter sido reconhecido e que não seja dinheiro não é porque hoje tenta se fazer aqui cálculos de quanto é que... Não há cálculos possíveis, não há cálculos possíveis. Como é que se contabilizam mais de 15 milhões de vidas humanas perdidas? Como é que se contabiliza? - (E a memória apada e tudo, não é?) - Não há como e não só, quer dizer porque nós e depois tendemos a calcular os danos não é numa perspetiva muito material mas há uma série de efeitos e eu falo dos meus sobre os quais eu tenho refletido obviamente para além destes não lugares, existe a questão familiar, existe a questão familiar porque eu não cresci com pessoas mais velhas com avós. Que é algo que eu gostaria de ter tido na minha vida. Mas é algo tão normalizado nas existências das famílias africanas, este desenraizamento, cada um para seu canto e faz parte, não é, aquela questão do «epá, é a nossa realidade». E aí a malta encolhe os ombros e está tudo bem.

A maior parte da minha família continua em Moçambique porque os moçambicanos, por acaso, não são muito de diáspora mas os meus pais vieram para Portugal. E eu não cresci com avós e por que é que os meus pais tiveram de sair de lá? Há toda aqui uma...e outras famílias por que tiveram de sair? E outras violências foram sendo cometidas por que eu tenho ascendência chinesa também. E o sistema colonial não permitia preservar o nome, não é? E portanto as pessoas tinham de adotar nomes portugueses até este apagamento ancestral vai acontecendo, vai ocorrendo e depois como é que eu posso resgatar essa minha herança familiar? Como é acedo a ela?. Porque depois há aqui um... Claro que nem todas as famílias são são assim, mas eu conheço muitas que são que é isto é uma ferida tão aberta que não se fala no assunto. Estas questões não são conversadas. Eu não cresci com este tipo de conversas até porque cá a geração dos meus pais sobretudo e também por isso não se ouvia falar nem... Pronto vem outro país vem e vem dos territórios colonizados e entendem que este não é o seu país. Então «‘bora lá passar despercebido, não criar ondas, fazer a nossa vidinha tranquilamente.» Esta sempre foi a narrativa como é óbvio quando nós também somos instruídos a não levantar ondas também vamos definhando de alguma forma a esse nível.

VÍTOR SANCHES: Também tem aquela cena parental, tipo...pai, né? Que é mais presente, um pai que quer saber o que é que o filho faz na escola, mas nós não tínhamos, os nossos pais tinham que trabalhar naquele tempo, porque tinham que trabalhar. E nós éramos deixados à parte, eu ia de manhã para a escola, à tarde não tinha nada, estás a perceber? Então, a maioria das pessoas eram assim, né? Então para a tarde era só coboiadas e fazer assado e cozido até os pais virem e depois ali pronto, ias para casa e tal, mas nunca tive o luxo do me pai me levar para a escola, eu aprendi a ir a escola sozinho, eu nunca tive o luxo de o meu pai ir e ver ai...uns treinos meus de futebol ou assado ou cozido, apoiar-me nos treinos e tal. Nunca tive nada disso, enquanto eu via colegas meus brancos que tinha essa vertente, né, que tinham esse apoio.

Então, aqui em casa nós não tínhamos tempo para amor, mimos e carinhos, não tinha nada disso, tinhas que ser duro, porque tinhas que ser duro, tinhas de ser duro porque estas aqui a viver no bairro, porque tens situações onde tu é que tens que...afirmar e tinhas que pronto...ir a outros sítios onde não podias ter o que as outras pessoas tinham que ter porque, a situação económica era diferente, então tinha que ser duro tudo, não tinha outra maneira de a tua aprendizagem...

Eu não sei como é que acontecem, não sei se é fenómenos onde o governo local opta por fazer isso ou se vem mesmo de...lá de cima, mas a cena importante é que. Epá, é uma pena, mas a história se repete nessa...repete-se por causa das pessoas, são... não aprendem com a história, não é? Eu acho que era...para tirar...tirar um valor, um balanço disso e ver se resulta ou não resulta e depois é que se aplica mas...eu acho que é muito violento, e isso torna as minorias ainda com...com mais vontade de fazer essas tais mudanças, né? porque, e também se protegerem-se ainda dessas agressões. Tu vês que há pouca comunidade cigana que trabalha, para um português, eu não conheço quase nenhum, e isso é anos e anos de levar com...os portugueses no sentido de os portugueses renegarem e não deixarem fazer parte da sociedade portuguesa, e é a mesma coisa que se passa com a comunidade negra, né? Muitos ainda trabalham para o português, ou para o branco, porque aqui, obviamente Portugal é branco. E depende das ???agressões que apanhas, mas vai chegar a um ponto... a um certo ponto onde começas a negar e te começas a afastar desse mundo, a agressão é muito forte, saber que tu tens que ir vender no mesmo sítio, sabendo que tu não tens trabalho, tens que ir aguentar os mesmos abusos, isto é muito complicado. Eu tenho irmãos meus aqui que trabalham só aqui na zona, não trabalham na obra mais porque sofriam tantos abusos que só fazem trabalhos aqui para a zona. Então, a tua condição económica permanece, pelo menos a tua saúde mental… Pronto, é que é mais importante também, e coiso, começas a salvaguardar. Embora, nos somos umas pessoas que, nós habituamos com essas agressões, habituamos com a violência policial e torna se norma, estás a ver? mas não deve ser assim.

PAULA CARDOSO: Portanto há a conversa que temos sempre tivemos entre nós, entre étnico e racialmente iguais e não temos com a maioria branca. A partir do momento em que, felizmente, estas questões começam a ser trazidas para o espaço público através do movimento negro que, felizmente também, está muito ativo cada vez mais. Não é a partir da política, porque volta e meia perguntam-me está «mas é porque já existe uma maior sensibilidade maior uma maior preocupação com estas questões em nível político?» - eu digo «Lamento, não existe». Isto é uma pressão que vem das ruas e também vem de fora, das instituições tanto da União Europeia como da ONU, que é incansável numa série de relatórios que vai produzindo sobre o país e sobre as medidas que devem ser tomadas não só a nível das forças de segurança, como a nível da revisão dos manuais escolares.

Tudo isto vem sendo trazido em relatórios de uma forma muito clara os diagnósticos estão mais do que feitos e refeitos, tanto mais que quando ouvi falar deste plano nacional [contra o racismo] que havia um grupo de trabalho a trabalhar nisto eu pensei mas, a trabalhar no quê? Se o diagnóstico já está mais do que foi feito nós já sabemos quais são os problemas agora nesta fase não é perder tempo, é mãos à obra. É pegar naquelas que são as recomendações já foram feitas há séculos, compilar aquilo e passar para a frente.

E claro existe essa dificuldade. A dificuldade começa logo em reconhecer se o direito ao discurso. Reconhecer se que aquele que é percecionada como o outro tem inteligência. Quando eu falo desta questão da desumanização tem que ver com isso: com essa questão da coisificação, esse tratamento das pessoas negras com a mercadoria ao longo da história. Uma série de mecanismos opressores nomeadamente a máscara de Flandres, que existia no tempo da escravatura para que, não só para que não se pudesse falar mas que não se pudesse comer também. Tudo isso, todos esses instrumentos ficam depois...

RUTE CORREIA (narração): É certo que a escravatura já existia tanto em Portugal como em África muito antes da expansão marítima. Mas há duas características que distinguem a operação portuguesa da realidade até então: a industrialização do processo por via do comércio transatlântico e a introdução de um fator biológico na seleção das pessoas a quem a humanidade seria transformada em mercadoria. A cor da pele passou a ditar quem era o livre e quem era o escravo.

O tráfico humano do período expansionista começou oficialmente em 1444, quando 235 pessoas foram capturadas na África ocidental, trazidas para Portugal e vendidas como escravos em Lagos. Hoje, o Mercado dos Escravos dessa cidade algarvia foi reconvertido num núcleo museológico dedicado à escravatura. E em 2018, o Observatório Internacional dos Direitos Humanos reconheceu o seu trabalho na preservação da memória destas pessoas, atribuindo-lhe o título de Centro Internacional de Memória Viva da Dignidade Humana. Mas quando uma vala comum com ossadas de descendentes africanos foi descoberta em 2009, os restos mortais foram guardados, mas quase não se falou mais no assunto. Hoje, esse espaço é um campo de minigolfe.

Lembras-te quando no início do episódio, eu disse que “o processo de descolonização deixou para trás um racismo estrutural apontado à população negra tanto no território nacional, como nas terras que foi invadindo”?

Pois bem. Nos mais de 300 anos em que Portugal colonizou o Brasil, de 1500 a 1822, estima-se que tenham sido traficadas quatro a cinco milhões de pessoas escravizadas. O trabalho da escravatura era de tal forma necessário à manutenção do privilégio da classe dominante no gigante sul-americano que, depois da independência do Brasil, foi ponderada a união transatlântica destes o Brasil e Angola.

Mesmo com a abolição da importação de escravos para a metrópole, Portugal continuou a traficar pessoas durante mais de um século. E traficou muito mais do que qualquer outro país europeu. Segundo o historiador Arlindo Manuel Caldeira, entre 1450 e 1900, Portugal terá traficado cerca de 11 milhões de pessoas.

PAULA CARDOSO: Eu farto-me de rir quando tenho pessoas à minha volta dizerem «é pá, mas esta coisa de chamar para chamar preto, chamar branco..». Para já o preto, lá está, é uma palavra que é tremendamente racista. Não conheço nenhum negro em Portugal que perante a pergunta, que é uma pergunta que surge recorrentemente, «Ah, mas tem algum mal? como é que se deve... que palavra é que se deve usar?» Obviamente que eu respondo sempre, olhe, prefiro que me chamem pelo nome, mas se a pergunta é essa, eu digo-te: porque é que preto é insultuoso, porque não conheço ninguém em Portugal que tenha crescido sem ouvir essa palavra associada a um insulto.

Não conheço, ninguém diz «negro, vai para a tua terra», dizem «preto, vai para a tua terra». É tudo com preto preto preto, então quando está quando nós estamos a discutir a questão racial e há pessoas que entretanto, aliás... Portugal é tão criativo e criou o tráfico transatlântico de seres humanos eu sei que gostam muito e mais uma vez a não conversa que surgiu também nesse é ou não é com Carlos Daniel. Acho que o tema era como é que lidamos com a nossa herança. Essa é uma coisa com a nossa herança histórica. Como é que podemos enfrentar, tinha uma terminologia nesse sentido e depois convida-me uma tipa, que é altamente desonesta do ponto de vista intelectual em todas as intervenções que teve, aquela Helena Matos que acaba por entrar naquela aquela argumentação fácil de comparar escravatura com servidão. São contextos que não devem ser misturados, porque Portugal criou o tráfico transatlântico de seres humanos. Ponto. Isto está historicamente comprovado com uma série de fontes que não são os ativistas, lá está.

Esta questão de que são os ativistas antiracistas que criaram o racismo é mais uma invenção portuguesa. Existem obviamente esses dados. Qualquer pessoa que queira aprender eles estão disponíveis. Mas continua a existir uma ala da sociedade muito ruidosa, porque não tem que ver não ser numerosa. Não temos lá está, não dá para perceber... se bem que a votação das presidenciais no André Ventura diz muita coisa sobre o que se anda a passar. Mas esta, esta coisa de desconversar, não é? Esta esta dificuldade de falar abertamente sobre os temas depois cria estes ruídos, que é… Estamos a discutir a responsabilidade de Portugal nesta história e estamos a refletir sobre o impacto que ainda hoje esse passado tem nas nossas insistências, e há uma série de pessoas que diz que não percebe como é que isto continua impactado mas que não faz um esforço mínimo para perceber como é que foi feita a libertação que não foi libertação nenhuma, como é óbvio. Como é que se criaram sistemas para continuar a manter os mesmos de sempre subjugado,s dependentes, reféns do homem branco, com a ajuda da ciência a determinada altura da história. E não enfrentar isto, não contar esta história é criminoso.

Do meu ponto de vista é criminoso, porque eu consigo compreender que isso vai implicar uma terapia coletiva gigante porque era conforme eu dizia. Quando nós temos toda uma identidade nacional ancorada nesta ideia dos grandes navegadores descobriram que deram novos mundos ao mundo.

Esta conversa da treta, como se todos os lugares por onde andaram estivessem lá para recebê-los de braços abertos, não tivesse havido uma série de pessoas que se insurgiram como se não tivesse havido muita violência a própria história de 25 de Abril a Revolução dos Cravos. Quais cravos?! Houve sangue muito sangue derramado nas colónias para que houvesse um de 25 de abril. O 25 de Abril só acontece porque há lutas de libertação senão não haveria.

E eu só consigo ter esta noção da minha história. Eu só consigo fazer este resgate, porque investi nisso. E invisto nisto ainda, porque há tanta coisa por saber: intelectuais que eu desconheço, cuja obra eu desconheço porque foram apagados. Há apropriação de uma série de... Até filosofias de vida, e formas de estar que vêm desses pensadores e que nós e depois vemos...«ah, afinal, a sério que tinha esta origem». Eu ao ler e tenho feito muito esse trabalho, mas é difícil, porque tens de investir muito tempo na pesquisa muitas fontes estão em inglês, francês, o que dá mais trabalho na leitura, é um facto. Não é a nossa língua nativa logo há uma preguiça acrescida pelo menos eu falo por mim. Leio, sim, mas prefiro ler informação em português mas sai mas eu tenho o privilégio de conseguir acessar essas informações porque consigo ler em inglês e espanhol consigo ler em francês. Portanto tenho aqui felizmente o privilégio de aceder a uma série de referências a uma série de fontes que Portugal me negou a vida toda e continua a negar porque os manuais que se produzem e o conhecimento e o conhecimento que se produz continuam a ser eurocêntrico.

RUTE CORREIA (narração): Uma terapia coletiva gigante que talvez possa ser feita em conjunto. O memorial da escravatura é um primeiro passo simbólico de um longo caminho em que será fundamental recontar a história reconhecendo a barbárie, mas também os outros protagonistas e as lutas constantes do povo africano contra a ocupação europeia, onde se inclui naturalmente a portuguesa.

No século XIX, o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, sobretudo africanas, tornou-se uma máquina comparável à de uma multinacional atualmente: comércio de contornos globalizados em que a exploração dessas vidas humanas era essencial no processo de industrialização das potências económicas e imperiais da altura – um grupo em que Portugal ocupava uma posição já completamente secundária. Mas são as ações de Portugal e a sua ambição expansionista, a partir do século XV, que inauguram esta desumanização de milhões de seres humanos que resiste até hoje.

O sofrimento de uns foi o motor do desenvolvimento dos outros; Portugal soube disso desde o início e mesmo assim escolheu esse caminho cruel. Eis um excerto da Crónica da Guiné, escrito em 1453 por Gomes Eanes de Zurara:

«o outro dya, muito cedo pella manhaã por rezom da calma, começarom os mareantes de correger seus batees, e tirar aquelles cativos pera os levarem,

segundo lhe fora mandado; os quaaes, postos juntamente naquelle campo, era hüa maravilhosa cousa de veer, ca antre elles avya alguüs de razoajda brancura, fremosos e apostos; outros menos brancos, que queryam semelhar pardos; outros tam negros come tiopios, tam ctesafeiçoado,s, assy nas caras como nos corpos, que casy parecia, aos homeês que os esguardavam, que vyam as imageès do imisperyo mais baixo.

Mas qual serya o coraçom, por duro que seer podesse, que nom fosse pungido de piedoso sentimento, veendo assy aquella companha; ca huüs tiinham as caras baixas, e os rostros lavados com lagrimas, olhando huüs contra os outros; outros estavam gemendo muy doorasamente, esguardando a altura dos ceeos, firmando os olhos em elles, braadando altamente, como se pedissem acorro ao padre da natureza; outros feryam seu rostro coro suas palmas, lançandosse tendidos em meo do chaão; outros fazjam suas lamentaçooês em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nasquaaes posto que as pallavras da linguajem aos nossos nom podesse seer entendida, bem correspondya ao graao de sua tristeza.

Mas pera seu doo seer mais acrecentado, sobr-eveherom aquelles que tiinham carrego da partilha, e começarom de os apartarem huüs dos outros; afim de poerem seus quinhooês em igualleza; onde conviinha de necessydadc de se apartarem os filhos dos padres, as molheres dos maridos, e os huus irmaãos dos outros. A amigos nem a parentes nom se guardava nhüa ley, somente cada huu cava onde o a sorte levava!

Oo poderosa fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando as cousas do mundo como te praz. E sequer põem ante os olhos daquesta gente miserável alguü conhecimento das cousas posturoeiras, porque possam receber algüa consollacom em meo de sua grande tristeza! E vos outros que vos trabalaaes desta partilha, esguardaae com piedade sobre tanta miséria, e

veede como se apertam huüs com os outros, que apenas os podees deslegar! Quem poderya acabar aquella particom sem muy grande trabalho; ca tanto que os tiinham postos em hüa parte, os filhos que vyam os padres na outra, allevantavanse rijamente, e hyanse pera elles; as madres apertavam os outros filhos nos braços , e lancavanse com elles debrucos, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe nom seerem tirados ! E assy trabalhosamente os acabarom de partyr, porque a aliem do trabalho que tiinham com os cativos, o campo era todo cheo de gente, assy do lugar, como das aldeas e comarcas darredor, os quaaes leixavam em aquelle dya folgar suas maãos, em que eslava a força de seu guaanho, soomente por veer aquella novidade. E com estas cousas que vyam, huüs chorando, outros deparfcindo, fazyam tamanho alvoroço que poiuham em torvaçom os governadores daquella partilha.»

RUTE CORREIA(fecho): Este foi o primeiro episódio da série Memória Coletiva. Contou com a edição e produção de Ricardo Correia; A música é de Vasco Completo e de Monster Jinx Type Beat e está disponível na Monster Jinx; os créditos detalhados e as ligações estão nas notas deste episódio.

Daqui a duas semanas regressaremos com a segunda parte deste “Colonialismo à Portuguesa”, que estará focada no impacto do racismo em Portugal, na cultura e sociedade atuais.

Um agradecimento especial ao Diogo Constantino, ao Allmighty, ao Carlos Ferreira, ao Tiago Maurício e ao doador anónimo – assinantes maxi e doadores extraordinários do Interruptor. Se tal como eles quiseres ajudar-nos a chegar mais longe, podes partilhar este episódio nas redes sociais ou contribuir financeiramente, a partir de apenas €2/mês. Passa pelo nosso site: interruptor.pt/contribuir.

O meu nome é Rute Correia e este é o podcast do Interruptor. Obrigada por estares desse lado e até daqui a duas semanas.

O colonialismo português não foi mais brando que os outros colonialismos europeus. Neste episódio, fazemos uma contextualização histórica desse período, com ênfase no tráfico humano perpetrado ao longo de séculos com o apoio do Estado português, e falamos das materializações desse legado profundamente racista na nossa sociedade.

Ouvimos Paula Cardoso (fundadora da plataforma Afrolink), Helena Vicente (investigadora do Instituto de Ciências Sociais), Carlos Pereira (humorista e repórter do 5 Para a Meia-Noite) e de Vítor Sanches (fundador do projeto e loja cultural Dentu Zona).

Esta é a primeira de duas partes da série Memória Coletiva focadas no colonialismo português. Contou com a edição e produção de Ricardo Correia; argumento, realização e voz de Rute Correia.

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